Era uma noite fria durante o inverno de 1834. As notícias repentinas de haver um assassino vagando por este bairro faziam meu estômago embrulhar ao me lembrar de Clarisse, pois as vitimas eram sempre mulheres ricas, jovens e atraentes, assim como minha linda Clarisse.
O vento bateu forte em meu rosto, me obrigando a segurar meu chapéu coco para impedir que voasse, enquanto caminhava em direção á casa dela, como me acostumei a fazer toda noite desde que decidimos nos casar a pouco menos de um mês.
– Clarisse, estou dizendo, você deveria ficar em casa. Pelo menos até a polícia encontrar este assassino. – Disse á ela enquanto ela enchia minha xícara com chá.
– Não seja bobo. Sabe que minha tia precisa de mim. Está em seus últimos dias. Além disso, deveria se preocupar mais com você. Já não lhe disse para não andar desacompanhado?
Eu sofria de narcolepsia. Não eram raras as ocasiões em que cochilava durante o dia, tendo todo o meu corpo paralisado e indefeso. Estava acostumado á isso desde criança e já nem me importava se ficasse inconsciente a qualquer hora do dia. Não podia evitar.
– Clarisse... as vítimas são mulheres. Faça isso, por favor.
– Não vou me trancar em casa por causa de um assassino. Tenho certeza de que a polícia irá cuidar disso antes que mais alguém saia ferido.
Ferir, ela dizia como se fosse o pior que pudesse acontecer, quando na verdade todas as vítimas eram brutalmente assassinadas. Suspirei enquanto pegava meu chapéu e meu casaco, sabendo que nada a faria mudar de idéia.
– Venha jantar aqui amanhã. Vou pedir para que façam seu prato preferido. – Ela disse quando sai pela porta, acenando para mim.
Em algum momento da volta, eu sabia que minha visão estava começando a embaçar, senti meus membros pesados e sei que me escorei em um muro e dormi. Era tarde e meu sono se intensificava por causa de minha doença. Tive um sonho inquieto, intensificado por meu medo de perder Clarisse, ouvi gritos e vultos estranhos, acordando assustado ao imaginar sua imagem ensangüentada.
Não sei como cheguei em minha própria casa, pois ao acordar em minha cama não me lembrava de como havia chegado ali. Talvez fosse algum outro sintoma da doença, eu não podia saber, mas quase sempre quando eu acordava, me via em algum lugar diferente do qual eu estava ao dormir. Era um incômodo, tenho que dizer, as pessoas se afastavam de mim por isso, como se fosse algo contagioso. Em várias oportunidades tive ajuda de conhecidos que me traziam até a presença de algum familiar, mas com o tempo, até estes se afastaram. Mas Clarisse jamais se deixara afetar por meus problemas de saúde e sempre esteve comigo, mesmo quando ainda éramos criança.
Sabia que ela era a pessoa certa e não havia nada que eu não faria por ela.
E por isso me preocupei ao ler os jornais no dia seguinte ao descobrir que mais alguém havia sido vítima do sanguinário assassino da Rua 23, como passou a ser conhecido.
A rua que dera nome á ele era justamente aquela que Clarisse morava.
A pobre mulher foi encontrada morta, esquartejada em um beco e os pedaços haviam sido abandonados ali mesmo, para quem quisesse ver. Saber que eu havia estado naquela rua, naquela noite, e poderia ter cruzado com o assassino era o pior para mim. Podia ter sido Clarisse. O que eu faria sem ela?
Preocupado, sai de casa, disposto a convencê-la a morar comigo, pelo menos até que os crimes terminassem. Pouco me importava o que fossem achar se uma mulher solteira fosse morar com um homem sem terem se casado.
Embora quisesse encontrá-la, sabia que não estaria em casa tão cedo então me contive até que anoitecesse e desse o horário do jantar.
Estava tão frio que comecei a sentir meus dedos formigarem. O vento batia nas folhas das velhas árvores da rua com seu assobio choroso, dando certo ar lúgubre á paisagem. Olhei em volta, encarando aqueles que passavam por mim e imaginando qual deles poderia ser o assassino. O toque de recolher não me permitiria demorar muito mais se quisesse ter tempo para convencer Clarisse a morar comigo. Era preciso apertar o passo.
– Você se preocupa demais. Está tarde para sair perambulando pela rua cheia de malas. Estou segura em casa.
Eu a encarava seu rosto por cima do vaso de flores na mesa. Ela se manteve calma durante todo o jantar e nada do que eu dissesse parecia fazê-la mudar de opinião.
– Morando sozinha? Clarisse! Por que tem que ser tão cabeça dura? Venha comigo por hoje e amanhã voltamos para buscar suas coisas.
– Estou tão cansada... Se estiver tão preocupado, por que não fica aqui esta noite? – Ela inclinou a cabeça e deu um meio sorriso para mim. – Estarei segura com você.
Eu não podia deixá-la sozinha. Não parecia certo. Iria então velar seu sono e impedir que qualquer mal á atingisse. Era a única solução.
Sentei-me em uma poltrona em seu quarto, abusando da intimidade que nós ainda não devíamos ter. Observei enquanto ela se deitava e se virava para mim, sorrindo e murmurando boa noite ao se cobrir.
A noite avançava e sua escuridão forçava meus limites. Não iria resistir por muito tempo ao sono, sabia que a qualquer momento poderia ficar inconsciente tendo em vista o mal que me afligia.
Pensamentos de morte inundavam meu cérebro, me mantendo acordado por alguns instantes. Porém, no momento em que consegui raciocinar direito sem me deixar levar por sentimentalismos, percebi que não era mesmo necessário me manter acordado. Eu estava sendo um bobo super protetor, é claro, o assassino só atacava mulheres que andavam noite afora, não senhoras seguras em suas próprias casas. Eu havia me deixado levar pelo medo, pois ele não era um invasor, apenas um sanguinário sem escrúpulos.
Clarisse estava deitada. A luz do luar que entrava pela janela iluminava seus cabelos loiros caídos no rosto, enquanto sua mão pousada sobre o corpo suavemente acompanhava o ritmo de sua respiração lenta de quem já sonha. Eu a olhei com ternura, momentos antes de fechar meus olhos ao perceber que a sensação de dormência causada por meu sono anormal estava começando a me atingir e relaxei na poltrona, sorrindo ao perceber que ela estava segura.
Ainda estava escuro quando meus olhos se abriram. Ao meu lado jazia Clarisse, ainda dormindo. De alguma forma eu havia me movido até sua cama e me sentado ao seu lado. Mas algo estava diferente. A posição de seu corpo não parecia natural. Ouvi ruídos de passos e ao olhar para frente, havia um homem parado na porta e o coro de uma multidão revoltosa soava pela janela entreaberta. Meus extintos despertaram para um possível suspeito de assassinato fugindo e adentrando na primeira residência que encontrasse.
Eu poderia defendê-la. Lembrava-me de ter visto uma faca na cômoda perto da cama.
Ele caminhou até a janela em passos rápidos e bruscamente puxou as cortinas permitindo que toda a luz da lua entrasse no aposento e em seguida se virou, mostrando seu rosto. Eu assistia aquilo sem saber o que deveria fazer ao me deparar com o próprio Chefe da Polícia.
– O que foi que você fez? – Ele perguntou se dirigindo á mim. – O que foi que você fez? – Ele repetiu mais uma vez.
Olhei-o sem entender o que queria dizer, por mais que gesticulasse com as mãos e me olhasse incrédulo. Vendo minha reação, ele caminhou até mim, furioso, me obrigando a buscar a faca na cômoda para o caso de algo sair do controle.
Mas ela não estava lá. Olhei para Clarisse e seus cabelos loiros estavam manchados de vermelho, que também se espalhava por toda a cama. Estava morta ao meu lado, inerte. Sua respiração havia cessado para sempre, porém seu coração ainda forçava o líquido escarlate para fora do corpo, jorrando sobre a cama. Seus olhos me encaravam abertos e apavorados numa expressão de dor e traição que eu jamais poderei me esquecer.
Não se tratava mais de um caso de narcolepsia, eu logo percebi ao despertar neste cenário. Era um caso de dupla-personalidade em que todo o mal que havia sido acumulado em meu ser havia despertado, de uma forma que eu jamais poderia ter imaginado nem em meus piores pesadelos. Encarei a faca, que ainda segurava em uma das mãos, horrorizado ao perceber os fatos e enterrei-a em meu peito.
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